A técnica da “ancoragem” como recurso para as zonas de desacordo

Livia Bello

| CEO The Speaker

Muito prazer, meu nome é Lívia Bello, sou CEO e Fundadora da The Speaker, uma empresa que é referência em comunicação e oratória no Brasil.

Search

Últimos Posts

Liderança com autenticidade

Liderança com autenticidade é uma das características mais valorizadas nas organizações modernas. Em tempos nos quais os profissionais buscam propósito, transparência e conexão verdadeira com

Ler mais »

A técnica da “ancoragem” como recurso para as zonas de desacordo

No campo da negociação, do direito contratual e até mesmo nas audiências judiciais e extrajudiciais, existe um conceito amplamente utilizado por advogados, mediadores e partes interessadas: a técnica da ancoragem. Essa técnica consiste em estabelecer um ponto de referência inicial (uma âncora) que influencia diretamente a percepção de valor, justiça ou razoabilidade de qualquer proposta subsequente, especialmente em contextos onde há desacordo entre as partes.

Neste artigo, vamos entender em profundidade como funciona a ancoragem, qual é sua aplicação prática nas zonas de desacordo, como ela se manifesta em disputas judiciais, negociações extrajudiciais, audiências de conciliação, acordos e contratos, além de oferecer exemplos e cuidados éticos na sua aplicação. Também abordaremos como o profissional do Direito pode utilizar essa ferramenta com inteligência e estratégia, respeitando a boa-fé objetiva e os princípios fundamentais da negociação.

O artigo está dividido em seções temáticas para facilitar a compreensão e aplicação prática. Ao final, você encontrará uma seção de perguntas e respostas e uma conclusão com os principais aprendizados.

O que é a técnica da ancoragem

A técnica da ancoragem vem da psicologia comportamental e foi amplamente explorada pela economia comportamental. Em resumo, trata-se do uso de um número, valor ou ideia inicial que influencia todas as demais decisões ou avaliações subsequentes. Esse valor funciona como uma âncora mental.

Na prática, mesmo que o valor apresentado inicialmente não seja o mais justo ou realista, ele tende a moldar a forma como as demais informações são interpretadas. Essa influência ocorre mesmo quando o interlocutor tenta ser racional. O valor de ancoragem pode ser arbitrário, mas exerce forte influência nas decisões seguintes.

Por exemplo: se uma parte pede inicialmente R$ 200 mil de indenização em um processo, ainda que o valor real da condenação devesse girar em torno de R$ 100 mil, o juiz ou a parte contrária tenderá a considerar ofertas e contrapropostas a partir da âncora apresentada. O mesmo vale em negociações de acordos, fixação de valores em contratos, ou definição de percentuais de participação societária.

A ancoragem e a economia comportamental

A ancoragem foi estudada profundamente por Daniel Kahneman e Amos Tversky, dois psicólogos que provaram, por meio de experimentos, como decisões humanas são influenciadas por heurísticas e vieses cognitivos.

Em um de seus experimentos mais famosos, as pessoas giravam uma roleta com números entre 0 e 100 (viciada para parar em 10 ou 65) e depois eram perguntadas quantos países da África pertencem à ONU. Aqueles que viram o número 10 davam estimativas muito mais baixas do que aqueles que viram o número 65. Isso mostra como o primeiro número visto influenciou diretamente a resposta, mesmo que a roleta não tivesse nenhuma relação com a pergunta.

Essa é a essência da ancoragem: o valor inicial influencia toda a lógica subsequente, mesmo que seja irrelevante. No campo jurídico, isso ocorre frequentemente e pode ser usado com consciência e responsabilidade.

O papel da ancoragem nas zonas de desacordo

As zonas de desacordo são espaços onde as partes possuem interesses divergentes, incompatíveis ou ainda não ajustados. No campo jurídico, as zonas de desacordo aparecem:

  • Na fixação de valores indenizatórios

  • Na proposta de acordos trabalhistas ou cíveis

  • Em negociações contratuais

  • Na mediação familiar ou empresarial

  • Em partilhas de bens

  • Na discussão sobre cláusulas penais ou revisões de contratos

Quando há uma zona de desacordo, é comum que cada parte tente defender seu ponto de vista. E é justamente aí que a técnica da ancoragem se torna eficaz: quem apresenta a primeira proposta de valor geralmente dita os limites do jogo.

A ancoragem funciona como um recurso de orientação e influência, permitindo ao advogado ou à parte estabelecer limites mentais e psicológicos para a negociação. Muitas vezes, o simples fato de ancorar um valor alto faz com que a contraproposta também suba, aproximando-se daquilo que se pretendia inicialmente.

Como aplicar a ancoragem em audiências e negociações

A aplicação prática da ancoragem em audiências e negociações exige estratégia, conhecimento do caso e preparação. Veja como utilizar a técnica de forma eficaz:

1. Estude bem a zona de possível acordo

Antes de apresentar uma âncora, é essencial entender qual é a ZOPA (Zone of Possible Agreement) — ou zona de possível acordo. Essa é a faixa de valores dentro da qual há espaço para concessões e acordo. A âncora deve ser apresentada dentro ou próxima dos limites superiores dessa zona.

2. Apresente a primeira proposta, quando possível

A parte que lança a primeira proposta com um valor bem fundamentado costuma obter melhores resultados. Isso porque ela posiciona a discussão dentro de um intervalo mais favorável para si. Se o outro lado apresentar primeiro, você pode contra-ancorar, trazendo justificativas técnicas ou jurídicas para reduzir o impacto da âncora inicial.

3. Justifique bem a âncora

Uma âncora bem justificada (com base em jurisprudência, contratos, perícias, laudos ou princípios legais) tem muito mais força do que uma proposta aleatória. Mesmo que o valor inicial seja alto, a fundamentação técnica pode dar legitimidade e minimizar a resistência da outra parte.

4. Use âncoras que permitam negociação

Evite apresentar uma âncora inflexível ou absurdamente fora da realidade, sob risco de gerar rejeição completa da proposta e quebra do diálogo. O ideal é ancorar em um ponto que favoreça sua posição, mas que ainda seja negociável.

Exemplos de ancoragem no direito

A técnica da ancoragem pode aparecer em várias situações do cotidiano jurídico. Veja alguns exemplos:

Direito civil

Um autor de ação de indenização por danos morais e materiais propõe o valor de R$ 300 mil, baseado em jurisprudência do STJ. Mesmo que a jurisprudência média seja de R$ 80 mil, o valor alto serve como âncora. A parte contrária provavelmente oferecerá valores mais altos do que se a petição inicial pedisse R$ 100 mil.

Direito do consumidor

Em uma ação por defeito em produto, o consumidor apresenta uma âncora forte pedindo devolução em dobro, multa contratual e danos morais de R$ 50 mil. Ainda que não receba tudo, a âncora alta influencia o valor final.

Direito do trabalho

O empregado pede R$ 200 mil em verbas rescisórias, adicionais e danos morais. A empresa, ao fazer acordo, tende a propor um valor de R$ 100 mil, o que seria impensável se a ação tivesse ancorado em R$ 80 mil.

Direito de família

Na mediação de partilha, uma das partes propõe ficar com 60% dos bens. Ainda que o acordo se feche em 50%, o ponto de partida elevou a expectativa da negociação, favorecendo concessões.

Riscos e limites éticos da ancoragem

Apesar de ser uma técnica legítima de negociação, a ancoragem deve ser usada com ética, boa-fé e responsabilidade jurídica. Há riscos importantes:

  • Valores absurdos ou desproporcionais podem ser interpretados como litigância de má-fé.

  • Ancoragens baseadas em fatos mentirosos ou documentos falsos são ilegais e podem gerar sanções.

  • Em algumas situações, o juiz pode considerar a pretensão exagerada como tentativa de enriquecimento sem causa.

Portanto, a ancoragem precisa estar alinhada com os princípios de proporcionalidade, razoabilidade e boa-fé objetiva, fundamentos do Direito brasileiro.

Contra-ancoragem: como reagir a uma âncora mal posicionada

Se a parte contrária ancorar a negociação em um valor elevado ou injusto, o advogado deve reagir com:

  • Contra-âncora fundamentada: apresentar um novo valor com justificativa técnica (cálculos, jurisprudência, precedentes).

  • Desconstrução do valor da âncora: mostrar que o valor é irreal ou desproporcional aos danos efetivos.

  • Uso de mediação ou perícia: sugerir a intermediação de um terceiro neutro para restabelecer a lógica da negociação.

A contra-ancoragem é uma habilidade tão importante quanto a ancoragem inicial. Saber rebater âncoras indevidas pode proteger os interesses do cliente e evitar acordos prejudiciais.

Ancoragem em contratos e cláusulas

A técnica da ancoragem também é usada na redação de contratos, especialmente para estabelecer:

  • Multas

  • Percentuais de participação

  • Prazos

  • Valores mínimos e máximos

  • Regras de reajuste

Por exemplo, ao redigir uma cláusula de multa por descumprimento contratual em 30%, a parte cria uma âncora que serve de parâmetro para qualquer renegociação futura, mesmo que a cláusula não venha a ser aplicada.

Ancoragem em propostas judiciais ou arbitrais

Nos procedimentos arbitrais, em que há maior liberdade na forma de resolução, a ancoragem também pode aparecer na apresentação de propostas de conciliação, indenizações ou cálculos de perdas e danos.

Nesses casos, como há menos formalismo do que em processos judiciais, a âncora bem posicionada pode definir todo o rumo da solução. Por isso, advogados e árbitros experientes costumam preparar âncoras com critérios econômicos bem detalhados.

A ancoragem como estratégia de gestão de conflitos

Além do aspecto técnico, a ancoragem atua como instrumento de gestão de expectativas e emoções, que são fatores centrais em qualquer conflito.

Ao apresentar uma proposta de valor bem estruturada, o advogado reduz a ansiedade da parte, cria um ponto de referência concreto e evita que o conflito se estenda por incertezas ou falta de parâmetros. Em outras palavras, a ancoragem organiza o campo do desacordo, tornando-o mais previsível e produtivo.

Perguntas e respostas sobre a técnica da ancoragem

A ancoragem é sempre válida em uma petição inicial?
Não. Ela deve ser usada com bom senso e base legal. Um valor excessivo, sem justificativa, pode causar má impressão ao juiz e até ser interpretado como tentativa de enriquecimento indevido.

É melhor deixar a outra parte ancorar primeiro?
Depende. Em geral, quem ancora primeiro tem a vantagem de guiar a negociação, mas em alguns casos estratégicos, pode ser mais prudente reagir à âncora alheia.

Posso usar ancoragem em contratos de prestação de serviço?
Sim. Ao estabelecer valores de referência, multas e prazos, você já está usando âncoras que moldam a relação contratual.

Existe jurisprudência que reconhece a influência da ancoragem?
Embora o termo “ancoragem” não seja comum em decisões judiciais, há muitas sentenças em que juízes reconhecem que valores pedidos inicialmente influenciaram acordos e decisões, desde que estejam dentro da razoabilidade.

Como evitar cair em uma ancoragem desvantajosa?
Estude bem os valores reais, prepare uma contra-ancoragem fundamentada, questione a base da proposta alheia e, se necessário, proponha uma mediação técnica.

Conclusão

A técnica da ancoragem é uma das mais poderosas ferramentas disponíveis para quem atua no campo jurídico, especialmente em contextos de negociação, mediação, conciliação e elaboração contratual. Seu uso estratégico pode influenciar o rumo de um processo, orientar zonas de desacordo e garantir melhores condições para o cliente.

Entretanto, seu uso exige preparo, base técnica, ética e boa-fé. Quando bem utilizada, a ancoragem não é manipulação — é estratégia legítima de negociação e pode gerar resultados mais eficientes, céleres e justos para ambas as partes.

Advogados que dominam essa técnica ampliam seu repertório e sua capacidade de resolução de conflitos. Afinal, mais do que vencer uma disputa, é preciso saber conduzir as partes a um desfecho inteligente, sustentável e juridicamente válido.

Nosso blog

Últimas postagens

Liderança com autenticidade

Liderança com autenticidade é uma das características mais valorizadas nas organizações modernas. Em tempos nos quais os profissionais buscam propósito, transparência e conexão verdadeira com

Ler mais »

Dificuldade em engajar a equipe

Engajar uma equipe é um dos maiores desafios enfrentados por líderes, gestores e coordenadores em todos os níveis de uma organização. Mesmo quando os profissionais

Ler mais »